quinta-feira, 3 de março de 2022

01 - Noriô

 

Todos os anos eram iguais, uma multidão de pessoas serpenteava a alta colina em volta da costa do mar em busca quem sabe do tal milagre, cada qual carregava uma cesta de frutas a legumes outros mais ousados achavam que peixes por serem caros nessa época poderia quem sabe trazer um milagre maior ou mais rápido, era irônico pensou Noriô, pois ali muitos queriam pressa para resolver suas pendencias, no entanto não hesitariam em ficar sete ou ate oito dias ali parado, afinal não era certeza de quando o grande pássaro passaria de novo ou se alimentaria da cesta do devoto.



Noriô trazia uma cesta de frutas apenas de cores amareladas, achou que esse seria seu diferencial, fazia bons quatro dias que esperava; em sua mochila tinha pães e massas bem temperadas para passar esses dias, tentava economizar sua energia, no entanto se por um instante deixasse de focar e se concentrar começava a vir às inúmeras vozes naquela imensa fila, a cada curva extremamente fechada lhe vinha, reclamações das diversas línguas que nem conseguia compreender, respondia a elas com um certo temor de que chegasse a passar da zona do pensamento para o real, o auditivo coletivo, como chamava sempre. Às vezes se deixava levar durante aqueles dias de fila em devaneios e presunções resolvendo os problemas daquelas pessoas, ora fácil, ora complexo e na maioria das vezes desdenhava de suas historias e temores, os resumia em meras faltas de algo, em suma naquela fila existiam pessoas com complicações físicas como possuir uma perna, um braço ou um olho. Nunca ouviu que o grande pássaro fazia crescer membros nas pessoas, ironizou, rindo para si mesmo.

Ouvia de tempos em tempos uma braçada de asas seguida de um vento forte vindo de cima sabia que o pássaro chegara, não o via realmente aquele caminho com curvas fechadas que ia se estreitando e subindo, não permitia tal visão, ficava motivado com aquilo logo seria sua vez, quando alguém descia já atendido feliz, quase que possuía seus pensamentos, lhe vinham sempre sem uma figura realmente enxergava palavras soltas em sua própria mente que iam se formando em uma velocidade que não seria possível em uma vida física. Notou como as pessoas com “defeitos físicos” como chamava não tinham seus membros faltantes brotando novamente, mesmo que seus sorrisos contagiantes pareciam demonstrar apenas uma aceitação, outros casos caras fechadas e rostos baixos como se suas esperanças tivessem sido sugadas como se seu caso não pudesse ser resolvido de forma alguma, notava então que ironicamente quando a pessoa alcançava o começo da grande colina aquele sentimento mudava positivamente como se em alguns casos fosse necessário um tempo maior de reflexão se o poder “magico” do tal pássaro tivesse o tocado e funcionado.

De noite seus pensamentos ficavam perambulando de pessoa a pessoa procurando ainda resolver seus problemas aquilo não lhe dava um tipo de altruísmo e sim uma superioridade crescente. Não sábia ao certo se aquilo lhe trazia algum beneficio. Desde que se lembrava de respirar escutava essas vozes, em ressonâncias maiores ou menores, como gritos ou sussurros ao longo do tempo soube como separa-las ou mesmo se concentrar não tento nada em vista ou uma pessoa especifica visualmente em mente, com isso dificultava uma simples conversa o que ganhou uma alcunha de timidez aos olhos dos outros ou mesmo achavam que possuía algum tipo de deficiência social para sua família era uma simples questão de ignorar o que não estava em sua mente e de alguma forma isso era verdade, mesmo as pessoas achando que jamais tinha tido uma conversa sequer,  para ele era o contrario. Totalmente inundado com tantos pensamentos, narrações, delírios e suas próprias resoluções para problemas alheios.

Ao amanhecer sentiu o vento mais forte em seu rosto e a fila andava rapidamente, foi chegando ao topo entre as inúmeras curvas,  ao longe via as casas amarronzadas de sua vila.

No alto existiam algumas ranhuras ao longo de um gigantesco,  pátio ornamentado com alguns traços pequenos que aparentemente não iam e não vinham ou formavam uma figura.

Galhos secos e couro velho forravam um circulo grande onde a ave deveria pousar, existia um tipo de construção retangular feita de troncos amarelados com relevos de pássaros mais diversos,  uma entrada se dava para o penhasco e outra para o altar onde foi feito desajeitadamente de pedras se colocava a comida e o peregrino parava ajoelhado muitas das vezes.

Depois de algumas horas no topo o grande pássaro preto chegou com seu bico amarelo e suas enormes penas que refletiam a luz de uma forma anormal criando estranhamente cores no ar como em um dia de chuva clara.

Alguns peregrinos colocavam a comida e ficavam em silencio outros agradeciam,  uns xingavam até,  e poucos balbuciavam seus pedidos de forma desesperada, a ave em algumas ocasiões levantava seus olhos e isso era sinal pelo menos se falava de que seu pedido tinha sido aceito e seria realizado, dentro de seu olhar havia outros olhares, milhares deles, um mar de olhos dentro de um olho.

Sua vez chegou, colocou sua oferenda no altar e ficou a olhar,  por curiosidade tentou captar alguma voz vinda da ave, nada, absolutamente nada, sua mente então foi inundada com seus próprios pensamentos em que questionava sua vinda ali, queria saúde para sua família, seu pai já muito idoso, porem retrucava consigo, pois com certa idade naturalmente a pessoa já não tem saúde, era um pedido realmente idiota, tentou falar, mas não conseguiu, sentiu vergonha, ficou então ali parado observando à ave comer, pareceu longo o tempo, seus pensamentos vinham e iam numa velocidade que nunca antes tinha sentido, aquilo o deixou bravo, desanimado, feliz quando foi irônico com a situação. De repente sentiu alguém o cutucar, o próximo da fila queria passar, foi então embora, quase correu dali descendo com toda velocidade. Sabia, sabia que aquilo tudo era uma farsa, sua mãe o forçou a ir lá fazer aquele pedido, mas era tudo uma idiotice, iria zombar dela quando chegasse, no entanto iria se vangloriar para os seus irmãos por ter feito a jornada, iria espalhar o quão o culto a ave é algo irrelevante, mesmo sendo majestosa, às vezes assustadora, bom em algo tinha que concordar que ela é única em sua beleza. Parou cansado exausto tinha chegava ao inicio da subida, em um impulso cuspiu no chão e xingou falando que estavam perdendo tempo subindo ali, muitos peregrinos na fila o olhavam surpresos, ele olhou de volta e queria saber o quão burros eram, captou e captou esperando algo vir a ele e escutava apenas sua voz os xingando, os xingando alto por dentro, parou olhou para o céu e naquele instante havia apenas sua voz e ele dentro de si.

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